Moacyr Mallemont Rebello Filho e César S. Costa – O Encontro – Quase 50 anos depois
Irei contar duas histórias que estão ligadas de uma forma muito especial, que muitos poderiam dizer ser impossível acontecer. É uma daquelas coincidências incríveis onde os mais descrentes podem se arrepiar e chegar a cogitar que realmente existe uma mão invisível vinda dos astros. Ambas as histórias retratam a vida de dois apaixonados pelo escotismo.
Tudo aconteceu em 2009, com o chefe Lima recebendo uma ligação de uma senhora que gostaria de doar uma série de livros para o grupo escoteiro da cidade. Seu ex-marido acabara de falecer aqui em Balneário Camboriú e havia deixado uma biblioteca pessoal.
O falecido senhor Moacyr Mallemont Rebello Filho (link da sua biografia), proprietário dos livros, foi por muitos anos escoteiro e adulto voluntário no movimento, chegando ao cargo de comissário Executivo Regional da então região da Guanabara, que equivale nos dias de hoje a presidente da região escoteira do Rio de Janeiro.
Após o telefonema, o chefe Lima foi ao apartamento onde o material se encontrava e teve algumas surpresas…, a primeira foi a grande quantidade de Livros e a segunda foi que o prédio não possuía elevador… com detalhe de que estava sozinho. Seria um trabalho árduo carregar aquilo tudo mas mesmo assim decidiu fazer a retirada. Encheu seu carro por completo, do porta malas ao banco dianteiro e levou todo material para a garagem da casa da Dona Maria, minha mãe, que naquele momento, emprestava esse espaço como almoxarifado do Grupo Escoteiro Leão do Mar.
Conferimos juntos a doação e verificamos que os livros eram os mais variáveis possíveis, de todos os tipos e assuntos. Era um acervo lindo, que encantou pela qualidade, preservação e raridade até leigos como nós. Em sua maioria eram obras muito antigas, que versavam sobre pintura – a maioria em língua francesa – belas coleções sobre orquídeas e plantas, livros, manuais e apostilas diversas sobre movimento escoteiro, em sua maioria da primeira metade do século XX, além de vários títulos da mais aclamada literatura brasileira e mundial.
Nos meses seguintes, depois de muitos debates com as Chefias do Grupo nas reuniões mensais, decidimos, com o objetivo de preservar e garantir uma melhor acomodação, doar todos os títulos que não se relacionassem a plantas e ao movimento escoteiro à Biblioteca Pública Municipal “Machado de Assis” de Balneário Camboriú. Isso perfazia um total de 90% do acervo pessoal do Sr. Moacyr.
Fiquei responsável pela tarefa e logo solicitei a visita de um funcionário da biblioteca na nossa sede para avaliar o interesse no grande material que tínhamos disponível. Dois funcionários, o Jonatas e a Lilian Martins avaliaram o material e gostaram do que viram. Cerca de um terço do acervo era raro e valioso e diante deste fato, caso mantivéssemos a iniciativa da doação, os mesmo ficariam no setor de obras raras da Biblioteca. Como exemplo da raridade dos livros, entre os mesmo estavam primeiras edições de obras de Monteiro Lobato e uma coleção completa de Machado de Assis, mais antiga e bem preservada do que a coleção mais rara que o município possuía como símbolo do autor que empresta seu nome à Biblioteca .
Com o respaldo dos especialistas ficamos ainda mais convictos que o melhor destino das obras seria a doação à Biblioteca Pública Municipal, onde seriam guardados com o cuidado que mereciam para sua conservação, além de estarem disponíveis para toda a comunidade. Um trabalho técnico de limpeza e combate a traças que durou cerca de 2 semanas foi realizado nas obras, que em seguida seguiram seu destino.
Alguns meses depois recebemos no grupo a visita da senhora que nos fez a doação, um tanto preocupada com o destino que havíamos dado ás obras. Pareceu aliviada ao saber como encaminhamos o destino da sua doação. Também neste período, Leandro Kruel, presidente do grupo na época, recebeu uma ligação da direção nacional da UEB – União dos Escoteiros do Brasil, para que encaminhássemos ao CCME – Centro Cultural do Movimento Escoteiro do Rio de Janeiro, alguns livros, que poderiam estar entre aqueles que ainda estavam em nossas mãos. Eram obras do escotismo editados em português muito antigos considerados os únicos exemplares ainda existentes. Eles estavam lá, entre vários outros que demonstravam como o Sr. Moacyr se identificava e era um apaixonado pelo escotismo. Tiramos fotocópia de um deles, Associação de Escoteiros Católicos da Lagoa, e encaminhamos os originais para CCME no Rio de Janeiro.
A segunda parte desta história começa alguns meses depois. Recebemos num sábado a visita de um senhor que queria conhecer o Grupo Escoteiro Leão do Mar. Informou que havia sido escoteiro na infância e adolescência no Rio de Janeiro-RJ e atualmente estava aposentado da função de juiz de direito e morando em Balneário Camboriú.
Conversa vai conversa vem, comentei com ele a existência dos livros do chefe escoteiro também do Rio de Janeiro-RJ que havia falecido em BC recentemente, e que sua família havia doado ao nosso grupo. Localizei os materiais e peguei os livros e revistas escoteiras e ambos ficamos folheando os mesmo. Numa das revistas encontramos para nossa surpresa uma foto de uma pioneiria onde aquele senhor ao meu lado, ainda jovem, aparecia na atividade escoteira. Foi um momento de alegria o senhor se reencontrar com ele mesmo, numa publicação que nem imaginava que existia… mas mal sabia ele que o destino iria lhe oferecer uma surpresa e emoção ainda maior.
Empolgado com a foto, começou a me contar das aventuras como jovem escoteiro, dos acampamentos, das músicas e outras vivências. Em meio ao bate papo continuamos apreciando os livros até que dentro de um deles encontrei uma folha de caderno escrita à mão, muito amarelada, com um texto que falava sobre bossa nova. Mostrei para o senhor Cesar que ficou visivelmente muito emocionado. Ele vira rapidamente a folha com o texto para mim e começa a cantarolar tudo que ali estava escrito, demonstrando que tinha a letra e melodia na sua memória. Aquela música guardada dentro do livro, que foi criada num acampamento à quase 50 anos atrás, no Rio de Janeiro, onde hoje atualmente é o aeroporto internacional. E ele a encontrou novamente depois de tantos anos aqui em Balneário Camboriú. Lágrimas surgiram no seu rosto e o momento foi arrepiante. Muito emocionado o Sr. Cesar começou a relatar o movimento escoteiro, na pessoa do seu chefe escoteiro da época, relação essa que foi definitiva nos primeiros passos de sua carreira profissional. O menino de origem e costumes muito humildes teve com seu chefe as orientações e os valores que foram essenciais para que conquistasse e tivesse sucesso na sua carreira. A gratidão estava lá, em seus olhos marejados, na sua emoção espontânea e sincera.
Nem preciso dizer o quanto esse encontro me impactou. Guardei ele com muito respeito por esses anos, pois foi um dos momentos que vivi no movimento escoteiro que mais me inspiraram a seguir adiante. Hoje, refletindo sobre a gratidão do Sr. Cesar com o chefe escoteiro que o acompanhou durante anos, percebo que ela só existe porque quando menino ele aceitou, acreditou e viveu as orientações recebidas.
Texto dedicado à memória do Sr. Moacyr Mallemont Rebello Filho (* 25/07/1941 + 07/12/2007) que à época de jovem, pelo Clube de Excursionista Rio de Janeiro (CERJ) guiou um grupo de montanhistas experientes chamados de “lagartixas” a montar uma via de acesso ao “paredão Baden Powell” no morro “Dois Irmãos”. Esta escalada está classificada até hoje como uma das três mais difíceis vias de acesso de Montanhismo da cidade do Rio de Janeiro. É a única via de acesso a uma montanha, em todo mundo, a homenagear Baden Powell, o fundador do Movimento Escoteiro. O nome foi escolhido pelos conquistadores por influência do Sr. Moacyr e pelo seu amor ao escotismo.
Site Escaladas:
Outros Sites:
Jornal da época na Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional
Link para algumas imagens dessa história.
José Manoel Pereira Neto.
Chefe Escoteiro no Grupo Escoteiro Leão do Mar – GELMAR SC 048.